sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Travessia

        

          Doze linhas me separam de você agora. O sinal permanece verde, os carros passam depressa. O que será que você carrega aí na sacola? Será que já fizemos seis de namoro e eu não lembrei? Eu lhe disse certo dia, que minha memória era uma coisa "não elefantal". Aliás, eu te amo. Você ainda acredita nisso? Houveram muitos tapas e portas na cara, flores arremessadas pela janela. Não sei o que me ajuda mais agora, se são os beijos apaixonados na escada do seu prédio, ou lembrar do dia que você se esqueceu do meu aniversário e me deixou plantado, sozinho, naquele restaurante meia boca que você recomendou. Independente do pecado, prevalecia o perdão. Fico feliz que você resolveu me encontrar, mesmo depois de quase sumir na estação de trem e me deixar para sempre Se eu não tivesse segurado seu braço bem forte, o que teria acontecido com nós dois? Quanta demora. É engraçado a forma como você morde os lábios quando está impaciente. Lembra daquele dia no restaurante? Eu lembro muito bem. Nosso pedido demorou horas para chegar, o atendimento estava fraquíssimo, você me culpava, já que eu tinha escolhido aquele local, depois que terminou de comer, se levantou, foi até o gerente e disse que não iria pagar a conta. Fiquei me perguntando na mesa, de onde vinha aquela coragem enfurecida saindo de um poço de insegurança e timidez. Foram os copos de vinho? Perguntei quando você voltou, me puxou e me levou para fora como se fosse um furacão. Você ficou parado, olhando os carros passarem, e começou a rir.

- Eu quero dormir com você.

E tivemos a nossa primeira noite juntos. Eu mal sabia que seria a primeira de muitas, e também que essas muitas ainda amargariam cada pedaço do meu corpo. O sinal fechou, aberto para pedestres, até que enfim. Fiquei lá parado, esperando que você viesse ao meu encontro.

- Oi! Eu disse.
- Quem é? Respondeu sem tirar os óculos escuros.
- Vê aquela estrela ali? É você. Vê aquela ali do ladinho? Sou eu.
- Lucas?
- Eu mesmo. Por que os óculos? Você sempre gostou de exibir seu belo par de olhos castanhos.
- Já te disse, não há nada de incrível nos meus olhos castanhos.
- Mas os seus são diferentes de qualquer outro castanho que eu tenha visto.
- Lucas...
- Diga.
- Eu sofri um acidente de carro.
- Quando? Por que não me contou antes? Você está bem? Acha que devemos sair do meio da rua?
- Eu estou bem... mas é que no acidente... eu perdi a visão.

          Nesse momento, eu segurei a sua mão bem forte (com a mesma força que usei quando não deixei ele partir, naquele dia na estação de trem) e disse que não me importava. Eu já estava com a face encharcada, o coração murcho. E a sua paixão por fotografia? Nossas noites vendo as estrelas? Lembrava de tudo que ele amava fazer e não mais poderia.

- Você está chorando? Ele disse, interrompendo meu pensamento.
- Não.

Ele colocou a mão direita no meu rosto, e disse que eu estava mentindo.

- Sempre um manteiga derretida mesmo...
- Mas é que...
- Eu estou ótimo. Não estamos aqui, juntos?

Eu me aproximei e lhe dei um beijo. Pareceu uma eternidade, e fora mesmo, mas só me dei conta disso horas depois.

- Ei moço. Você não vai atravessar? Quem você veio visitar?
- Como?
- Algum parente seu morreu recentemente?

Eu fiquei calado. Permaneci ali, olhando para o portão, sem saber se entrava e dizia adeus, ou se voltava para casa e chorava mais um bocado.

- Não, não vou atravessar. Ainda não sou forte o suficiente.
- O que tem lá do outro lado?
- Ele.

Um comentário:

j.artur disse...

eu não tenho outro comentário a fazer aqui, a não ser que: estou sem palavras. que texto foda. a forma como você descreveu. foi fácil se sentir na mesma pele. nossa, parabéns!